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Epilepsia na Infância

    Leda Beolchi Spessoto

    Este artigo pretende mostrar a repercussão na esfera emocional e na qualidade de vida que a epilepsia traz para o paciente e para a família, em especial para a família das crianças que desde muito cedo apresentam o quadro. Quanto mais graves as manifestações e de difícil controle, maior a influência sobre a personalidade do paciente e a dinâmica familiar.
    Visto assim o problema, o pediatra tem um papel bastante abrangente e importante no acompanhamento do seu paciente. Cuidados especiais com a patologia e com o desenvolvimento da criança requerem abordagem multidisciplinar, integração entre os profissionais e sensibilidade para orientar a família que, geralmente, tem no pediatra um importante ponto de apoio e referência.
    A epilepsia não se restringe às crises.
    Antes de tratar especificamente da epilepsia na infância, gostaria de relatar o sonho de uma paciente adulta, tal como é descrito por Mário ª Martins em seu livro “Epilepsias e Outros Estudos Psicanalíticos” (Ed. Artes Médicas – Cap. I – pág.17):
    …”É sobre o desastre de aviação. Alguém, uma pessoa, dizia-me que o desastre não ocorreu por ter o aparelho batido contra o morro. Isto já fora consequência de algo que havia acontecido antes, algo que pôs em pânico a todos os que viajavam. O piloto perdeu também a noção do que fazia e o avião foi chocar-se contra o morro.”
    …”O sonho se referia a um acidente no qual um grande avião havia se destroçado e incendiado ao colidir com uma elevação do terreno, por certo já pouco visível à hora crepuscular em que se deu o fato. Associando com o que restara, disse a paciente que o sonho apresentava uma ideia nova, uma revelação sobre o sucedido: a situação causadora do desastre, e a mais trágica, não fora a do choque, como todos pensavam, pois que, neste momento, os numerosos ocupantes do avião teriam tido morte instantânea, como o indicavam as condições em que foram encontrados os cadáveres, despedaçados e carbonizados entre os destroços do aparelho. De acordo, pois, com sua ideia, o desastre – para os que viajavam – dera-se, em verdade, antes do choque e se “aquilo” não houvesse acontecido, o avião não se teria precipitado de encontro ao morro.”

    …”Poderia, então, concluir que o pior e o principal, em suas crises, não eram a queda e as convulsões, mas algo como aquele momento de tumulto e pânico, entrevisto no sonho, quando o piloto se viu forçado a abandonar seu posto de comando para acorrer ao interior do avião. E acrescentou: “Todos se preocupam e se horrorizam com o ataque, mas a causa dele, o que se passa antes, dentro da gente, deve ser o mais importante e terrível.”

    Esse seu relato me parece mostrar como o problema não se restringe às crises, na epilepsia, mas como toda uma vida pode ser transformada pela expectativa, pelo risco de descontrole que a crise representa, além de outras consequências, diretas ou indiretas, até do próprio tratamento.
    Desta forma, o médico se depara com a necessidade de buscar o controle das crises com a ajuda de medicamentos, mas também, de muitas outras repercussões de uma patologia crônica, nem sempre suscetível de controle satisfatório e que traz implicações psicológicas, sociais e educacionais.
    Richard m. Marshall e J. Michael Cupoli falam em três tipos de pacientes:

    1) Pacientes “simples”, que não têm complicações com a epilepsia; a medicação antiepilética controla as crises, com um mínimo ou nenhum efeito colateral. As relações familiares e sociais são boas e não apresentam problemas escolares;

    2) Pacientes mais “devastados”, cuja epilepsia é decorrência de doenças degenerativas do cérebro ou de lesões cerebrais destrutivas. Suas crises começam cedo e nunca ficam, realmente sob controle;

    3) Pacientes “comprometidos” têm suas crises controladas por grandes períodos e estão livres de sérios problemas mentais e motores, mas têm vários problemas sociais, emocionais e educacionais; ao médico caberia a tarefa de orientar a família e a escola, para que pudessem ajudar a criança epilética a superar suas dificuldades.

    O tipo de crise, suas características e frequência, assim como a idade de início, são fatores importantes a serem reconhecidos para uma adequação dos medicamentos e o estabelecimento de um prognóstico, avaliando sua repercussão nas habilidades intelectuais, capacidade de concentração, memorização e performance escolar. A medicação pode acarretar efeitos colaterais, que precisam ser avaliados continuamente. O trabalho conjunto com a escola é importante, para adequar a melhor estratégia médico e pedagógica.”
    Pelo que foi dito até agora, já podemos vislumbrar como é importante e ampla a atuação do pediatra diante da epilepsia na infância.

    O pediatra e seu paciente

    Quando os pais levam o filho ao pediatra querem que ele cuide de uma parte deles, pois o filho representa seus próprios sonhos e ideais. O bebê é o príncipe ou a princesa, herdeiro de seus sonhos, de seus desejos, de tudo de bom. Espera-se que o filho seja o mais belo, o mais inteligente, o mais forte e saudável. E quando não é?
    Como é difícil aos pais (e ao pediatra) conviverem com as frustrações e os limites que uma patologia impõe.
    Será exigido muito mais deles (atenção, gastos, cuidados) e o retorno, a satisfação, não é o mesmo do filho “campeão”. Às vezes, a satisfação se restringe à possibilidade de sobrevivência.
    É importante compreender os sentimentos da família que, muitas vezes, recusa-se a aceitar os limites da situação e tenta buscar, através de meios místicos, milagrosos ou mágicos, a possibilidade de restaurar seus sonhos.
    Não adianta recriminar os pais. Mostrar que se compreende o sofrimento destes pode ser de mais valia e dar a eles a esperança de se sentirem acolhidos pelo médico, estabelecendo um vínculo importante, que será fundamental para lidar com os obstáculos encontrados em cada etapa do desenvolvimento da criança.
    Para o pediatra, é um prazer acompanhar o desenvolvimento de uma criança saudável, ou poder ajudar na superação plena de uma dificuldade (uma realização daquele sonho, que vem desde o vestibular, de ajudar as pessoas a ser exitoso em cada missão).
    Mas, como fica o sentimento do próprio médico, quando o melhor que pode fazer não elimina completamente o problema? É preciso aprender a conviver com ele, com limites (do paciente e do médico). Frustra-se o médico, exige-se mais dele por um tempo indeterminado e ele é solicitado a compartilhar mais angústias, referentes não apenas à patologia em si, mas também, a todas as implicações na vida de seu pequeno paciente.
    O que há de mais desafiante a ser realizado é buscar, ao longo do desenvolvimento de cada criança, a melhor solução para ela, adequada ao meio em que está inserida, em cada etapa de sua vida.

    A importância do pediatra para a criança epilética e sua família

    Embora o pediatra não seja o especialista encarregado diretamente do tratamento da epilepsia, é ele quem faz o acompanhamento da criança no seu desenvolvimento como um todo e de sua família.
    Muitas vezes não se conta com outro suporte. A maior proximidade do pediatra com a família pode permitir um maior sucesso no tratamento, colaborando para o uso regular dos medicamentos, evitando interrupções e permitindo adequações contínuas, segundo as necessidades das diferentes fases do desenvolvimento ou de momentos de maior tensão (provas escolares, problemas familiares, estresse por outras doenças etc.). Trabalho muito interessante sobre estes aspectos foi desenvolvido por Paulo César Trevisol-Bittencourt e J. W. A. S. Sander e publicado nos Arquivos Catarinenses de Medicina – Vol. 18 – no 3 – Julho/ Setembro 1989, sob o título: “Desobediência ao Tratamento em Epilepsia: O Outro Lado”.
    Doenças comuns da infância, ou mesmo pequenas infecções, vão exigir cuidados especiais do pediatra, pois o simples uso de uma outra droga traz o risco de interação medicamentosa, “desequilibrando” a medicação neurológica e pediátrica. Também é possível que haja maior nível de ansiedade da família, pois a própria debilitação por uma doença ou febre alta já podem facilitar o aparecimento de crises.
    O intercâmbio com o neurologista é muito útil para ambos os profissionais, dando maior coerência ao tratamento e transmitindo ao paciente e sua família a segurança necessária para enfrentar suas dificuldades.

    Aspectos psicológicos decorrentes da epilepsia

    Quando a epilepsia já se manifesta no bebê, muitos problemas psicológicos terão raízes ainda mais primitivas. Será maior a insegurança para se desligar da mãe (e vice-versa) ou de alguém que o proteja. As fases de maior independentização trazem risco, um desafio a mais e pedem cuidado adequado para cada criança, para cada família.
    Engatinhar, andar, correr, andar de bicicleta, tomar banho sozinho, nadar, frequentar a escola ou outros ambientes, sair com colegas já sem os familiares, na adolescência dirigir, namorar, escolher a profissão e tantas outras coisas podem ser atividades ameaçadas pelo fantasma da volta das crises, mesmo quando o quadro está controlado. Quanto maior o descontrole, maior será a influência na organização da personalidade e da dinâmica familiar (não importa quais as formas de manifestação, pois em certas circunstâncias uma pequena ausência pode representar até mesmo risco de vida).
    Gostaria de citar o trabalho de S. Krynski, “A Epilepsia na Infância como Fato Psicológico” – Bol. CEPP. Vol. IV, no 1 (1o sem. 1989): “Na abordagem psicopatológica da epilepsia infantil (50% dos casos se iniciam antes dos dez anos) há duas linhas básicas:

    1) Compreensão e significado da crise epilética na vida consciente e inconsciente do indivíduo;

    2) Ligação da doença a determinado perfil de personalidade – atualmente em discussão até certo ponto ultrapassada (personalidade epileptoide de Minkowska)…”
    Infelizmente, ainda hoje, dado como “personalidade epileptoide” é usado para justificar uma situação inevitável de “caráter”, que tira do médico qualquer responsabilidade e/ou possibilidade de amenizar outros fatores que compõem esta moldagem.
    Richard M. Marshall e J. Michael Cupoli mostram como problemas crônicos de saúde fazem crianças e adolescentes suscetíveis a vários distúrbios psicossociais. Em contrapartida, distúrbios psicossociais interferem com o desenvolvimento normal, incluindo a performance escolar.
    A epilepsia causa distúrbios psicossociais direta e indiretamente. Os efeitos diretos incluem alterações no afeto, humor e comportamento característico de certos tipos de crise e/ou medicação antiepilética. Os efeitos indiretos incluem distúrbios resultantes de doença crônica, interferindo com as interações que as crianças usam para aprender sobre si mesmas e sobre o mundo.
    “…Hoje se sabe que a interação com o ambiente pode ser a maior causa de problemas psicossociais.”
    Quatro tipos de interação são geralmente considerados: 1. pais-criança; 2. criança-criança; 3. profissionais-criança; 4. sistema escolar-criança.

    Alguns distúrbios típicos do comportamento são: hiperatividade, desatenção, labilidade emocional, apatia, irritabilidade, baixa autoestima, solidão e insegurança.
    “…A percepção da limitação da criança induz muitos pais a superproteger e infantilizar os filhos é a síndrome da criança vulnerável; ansiedade de separação, infantilização, superpreocupação com a pessoa, com o físico e sub-realização escolar.
    Os professores geralmente são desinformados sobre os problemas da epilepsia e dependem da orientação do médico para conduzirem o seu trabalho.
    Ao encerrar este artigo, gostaria de salientar uma vez mais a importância do pediatra para o desenvolvimento do seu paciente (ajudando-o a lidar e a conviver com sua patologia) e para a sua família (que, encontrando acolhida para suas ansiedades, terá melhores possibilidades de acolher e orientar o filho com problemas).
    Muitas vezes poderá ser necessário um trabalho psicológico mais profundo, com a participação de um especialista da área. Nestas circunstâncias, também é importante a sensibilidade do pediatra (e do neurologista) para avaliar esta necessidade e encaminhar adequadamente o paciente e a família, que têm no médico o seu ponto de referência e orientação.

    Freud diz, em sua obra, que “é impossível conduzir o paciente além de nossa própria capacidade de compreensão”. Neste sentido, parece-me que aí residem a arte e a beleza da Medicina, que nos permite crescer e ajudar a crescer, em um processo mútuo.

    Bibliografia

    1. Jadressic, E. Expressividad Emocional Familiar y Epilepsia. Revista Chilena de Neuro-Psiquiatria 26: 26/31, 1988.

    2. Jimenez, J. P. El Impacto Psicológico de la Crisis en el Paciente Epiléptico. Revista Chilena de Neuro-Psiquiatria 23: 91-95, 1985.

    3. Krynski, S. A Epilepsia na Infância como Fato Psicopatológico. Bol. CEPP, Vol IV, no 1 (1o sem. 1986).

    4. Lins, L. C. S. Rejeição do epiléptico pela sociedade e as conseqüências na sua auto-estima. Ver. Paul. Enfermagem, S. Paulo 5(1): 38-42, jan./mar. 1985.

    5. Marshall, R. M. e Cupoli, J. M. Epilepsy and Education: the Pediatricians Expanding Role. Advanced Pediatrics 33: 159-280, 1986.

    6. Martins, M. A. Epilepsias e outros Estudos Psicanalíticos. Ed. Artes Médicas, P. A., 1983.

    7. Spessotto, L. B. A Epilepsia Infantil. Revista Viver Psicologia no 25, Ano 3, pág. 17-19.

    8. Trevisol-Bittencourt, P. C. e Sander, J. W. A. S. Desobediência ao Tratamento em Epilepsia: O Outro Lado. Arquivos Catarinenses de Medicina, Vol. 18 no 4 julho/set. 1989.

    Obs: Artigo publicado na Revista Pediatria Moderna, Seção Psicologia em Pediatria, vol. XXI, no 2, págs. 238-241, abril de 1995.