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Notas suicidas: em busca de um sentido para a vida

    Maria Luiza Dias

    Que conceito de vida possui uma pessoa que pretende acabar com a sua própria? Por que as mensagens dos suicidas muitas vezes contém instruções para os que “ficam”?

    A partir de mensagens de despedida, a autora analisa vários aspectos dessa situação e aponta a importância da psicoterapia como fator de reintegração.

    Todo mundo, um dia, já parou para se perguntar seriamente sobre a vida e a morte. Com certeza, também, mesmo quem é ainda jovem, já acordou pela manhã num dia em que preferia não tirar a cabeça do travesseiro.

    Muitas pessoas resolvem insistir, embora outras desejem partir para o que esperam ser algum outro tipo de experiência bem distinta, utilizando-se da morte como veículo.

    O leitor será aqui convidado a mergulhar na pesquisa de um tipo de discurso específico: o dos suicidas que se ocupam em escrever sua mensagem de despedida, em momento anterior a sua morte ou da tentativa de morrer.

    Estima-se que 15% dos suicidas deixam notas de despedida, número este certamente subestimado, uma vez que se conhece o esforço da família e da sociedade em geral para omitir dados e encobrir a causa mortis.

    As idéias apresentadas a seguir baseiam-se no livro de minha autoria, recém editado pela Editora Brasiliense, Suicídio – Testemunhos de Adeus, onde as mensagens de despedida podem ser encontradas na íntegra, em anexo ao final do exemplar.

    As conclusões a que chega a análise do fenômeno do suicídio, através das mensagens de despedida, embora reflitam a experiência somente daqueles que desejaram deixar alguma mensagem para os que permanecem vivos (em forma de bilhete, carta ou fita de áudio), acredito poderem ser generalizadas ã população suicida em geral. Confira:

    “Eu vou me embora… Até algum dia!”
    – Para onde? – diríamos. Para compreendermos as imagens que o suicida, destes documentos, faz sobre a morte, temos que pensar sobre como a morte é vista em nossa sociedade.

    Com o avanço tecnológico e o desenvolvimento da medicina, a morte foi assumindo um significado diferente no código social. Se antes uma pessoa podia morrer em casa, com a família a seu redor (experiência compartilhada até com as crianças), hoje a morte encontra-se deslocada, na maioria das vezes, ao ambiente do hospital.

    Quando uma pessoa morre, entende-se que a ocorrência como se se tratasse de um fracasso do corpo médico. O homem reluta em aceitar sua falta de domínio sobre fenômenos da natureza. A morte aparece como um dado da natureza que o homem não pode modificar. Pode-se já prolongar a vida, mas não evitar a morte.

    Assim, a morte passou a ser vista como um acidente aterrorizador, que surge de repente e arrebata pessoas. A morte transformou-se num tabu e as pessoas do mundo ocidental contemporâneo evitam, o quanto podem, falar sobre ela.

    O suicida, aparentemente, rompe com este tabu. Provoca a morte, comporta-se de maneira rebelde com a sociedade, uma vez que parece desprezar aquilo que quase todos se esforçam por preservar: a vida.

    Vida e morte: inversão de conceitos

    Contudo, é neste momento em que ocorre um paradoxo, pois os vivos vêem a morte como uma interrupção da vida, como algo que acaba, que termina. Surpreendentemente, para o suicida, este ponto parece ser o início, como se ele deixasse o mundo aqui com estas pessoas e se dirigisse para algum outro lugar. E não é qualquer outro lugar, mas uma outra vida onde ele será mais acariciado.

    Deste modo, poder-se-ia dizer que o suicida encara a vida e a morte numa situação de inversão diante do conceito do vivo: de um lado, a vida é descrita como uma experiência inerte, sem graça, bloqueadora; de outro, a morte é apresentada com muito movimento, repleta de experiências emocionais e até parece ser por onde a comunicação se estabelece. Mas voltaremos a isso mais adiante

    Onipotência

    Vejamos mais algumas citações:

    De onde estiver ajudo vocês…

    Nós nos encontraremos lá em cima…

    Eu vou cuidar do meu destino.

    Nossa cultura é marcada por uma grande influência do catolicismo. Embora não se tenham dados sobre a prática religiosa destas pessoas, o que se pode perceber é que mesmo aqueles que não parecem ser praticantes referem-se a um mundo após a morte.

    Referências a Deus são muito freqüentes e, mais que isso, alguns como que roubam seu lugar e onipotentemente decidem sobre seu destino e sobre a vida dos que permanecem neste mundo. Somente o suicida sabe o dia, a hora, o local e a forma como ocorrerá sua morte.

    Nesta linha, o principal que é deixado pelo suicida não é um inventário material (“deixo meus livros para…, meu carro para meu irmão…”), mas um inventário emocional, no qual o suicida prescreve receitas às pessoas de seu relacionamento próximo.

    Assim pede ao ex-marido que faça terapia, escolhe inclusive o terapeuta que deve ser procurado, designa alguém para cuidar de outro alguém etc. O discurso assume um tom imperativo “faça”, “pense”, “lute”, “não chore nunca”.

    Se em vida o suicida sentia-se impotente e sem controle sobre os relacionamentos com as pessoas, na morte sente-se poderoso e com recursos para interferir na vida dos outros.

    A morte como instrumento

    Fica com tua vida, porque eu, lá de onde estiver, se eu tiver algum poder eu vou cuidar de você…

    Fica com Deus. Se eu for perto dele vou te ajudar bastante.

    O suicida, na sua versão mais afável, mostra-se muito bem intencionado. Ocorre que sua linguagem é ambivalente e cheia de contradições. A primeira pessoa acima é capaz de dizer num outro momento de seu discurso: “Quem provocou toda a situação foi você…”; “…não se incomode que você vai pagar caro isso, você vai pagar isso muito caro…”; “Infelizmente… estou me vingando de você”.

    Vê-se que o suicida é uma pessoa bastante atrapalhada com sua própria agressividade e, também, com a das outras pessoas, provavelmente. Parece desejar, no fundo, destruir o incômodo, a coisa ou a pessoa que acredita ser a causa de seus infortúnios, mas para isso, acaba por se destruir por inteiro.

    Por conseqüência, é bastante freqüente a presença de um discurso acusativo, que deseja impor justiça. Isto pode se apresentar de forma bem direta como: “O L. é o culpado da minha morte”. Ou mais veladamente, pois mesmo que a pessoa diga “não, você não tem nada a ver com isso, não se culpe…”, só o fato de provocar a própria morte já inclui a mensagem: ninguém, nem você me foi suficientemente bom e importante para que eu desejasse ficar.

    A morte aqui é apresentada como um instrumento de poder, como uma tentativa de obter comportamentos de outras pessoas e de impor um mundo à sua imagem e semelhança.

    Dificuldade em ver o outro

    Será você um pedaço de mim…

    Numa das versões do mito de Narciso, ele teria se olhado refletido na água de um lago e se apaixonado tão violentamente pela imagem que via refletida (a sua), que acabou se afogando ao tentar ir de encontro a pessoa amada.

    É possível estabelecer uma comparação entre a vivência de Narciso e a destes suicidas. As acusações (explícitas ou não), a expressão do desejo de influir sobre pessoas e fatos (também após sua morte), a dificuldade de ver o outro como um outro diferente (que funciona independentemente de suas preferências), delatam o “mundo-espelho” que o suicida desesperadamente espera encontrar.

    Assim, uma mãe se dá ao direito de primeiro matar os seus três filhos adolescentes, antes de se matar (certamente sem consultá-los sobre o próprio desejo de viver ou morrer), alegando: “Estou levando comigo as coisas mais importantes da minha vida” (grifo da autora).

    Os filhos lhe aparecem como objetos (as coisas), como extensões de si mesma: o que ela deseja, eles devem desejar. Eles devem corresponder ao que ela sente e pensa.

    Deste modo, o mundo em que desejariam viver, após a morte, parece ser apenas o mundo que lhes devolvesse a própria imagem refletida, como se os outros não passassem realmente de pedaços de si mesmo.

    E é este mundo dos próprios desejos que, no fundo, o suicida busca encontrar através da morte. Como se preferisse arriscar: ou tudo, ou nada.

    Talvez por isso o tipo de pensamento “oito ou oitenta” seja bastante presente neste discurso de despedida. O suicida tende a negar a ambivalência e a apresentar uma percepção cindida da realidade.

    Ou se é inteiramente bom e a realidade externa fica com todo o mau produto (“o mundo corrompe e estraga as pessoas”); ou a pessoa pode assumir toda a responsabilidade pelo desastroso relacionamento entre ela e um mundo bom (“desculpa, não consegui”).

    Com isso, o suicida vem a dizer não a uma realidade que não lhe devolve a própria imagem, que lhe impõe frustrações, necessidade de arranjos, de investir nos relacionamentos que estabelece, incluindo um “outro” que funciona a sua revelia.

    Psicoterapia, família e integração

    Eu sinto não ter correspondido a vocês…

    Famílias envoltas em dilemas como estes necessitam, certamente, o auxílio de um psicoterapeuta. Para que se possa compreender porque uma pessoa do grupo familiar se acha tão desencantada no convívio com as demais, ou mesmo, não encontra sentido na própria vida, é importante que se possa refletir sobre o contexto dos vínculos estabelecidos por ela.

    Enquanto se busca o responsável pelo mal-estar, não se percebe que o que incomoda, com freqüência, está no tipo de relação que envolve as pessoas em questão. Em muitos casos uma psicoterapia de família pode dar conta de elucidar o sentido existente por trás da recusa à vida e auxiliar o grupo familiar a transformar o contexto do sofrimento grupal.

    Afinal, foi no seio da família que se gerou o suicida que procura falar através de sua morte; fala esta, que pode ser liberada, em vida, com auxílio psicoterápico. É quebrando o tipo de raciocínio “ou oito ou oitenta” e construindo um raciocínio mais globalizante que se poderá compor uma percepção mais sadia e mais integrada da realidade.

    Deste modo, o ato suicida não pode ser compreendido como um fenômeno isolado, mesmo que o suicida acredite que o seja (“vou agora praticar aquilo que é de meu livre arbítrio”), pois ele estará sempre voltado ao mundo a que pertence e envolvendo outros indivíduos de seu círculo mais próximo.

    Bibliografia:
    Dias, Maria Luiza. Suicídio – Testemunhos de Adeus. Ed. Brasiliense, SP, 1991.

    O que é psicoterapia de família? Ed. Brasiliense, SP, 1991.

    Vivendo em Família: relações de afeto e conflito. Ed. Moderna, SP, 1992.

    Cassorla, Roosevelt. O que é suicídio? Ed. Brasiliense, SP, 1984

    Obs: Artigo publicado na Revista Insight Psicoterapia, ano II, no 21, págs. 13-15 agosto 1992.